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A tristeza das coisas

Writing Sample (This is the original, Portuguese version. Click here for English.)

Quando os cidadãos de Lorota viram o letreiro da loja, não podiam entendê-lo.

— O que quer dizer “A tristeza das coisas”? perguntou o dono da garagem ao lado.

— Sei lá, disse o vizinho padeiro. Dizem que estes japoneses que vêm ao pais trazem a sua própria cultura, a sua própria forma de ver as coisas.

— Ora, é bem difícil entender um japonês quando fala. Bem mais difícil entender a sua cultura.

O outro sacudiu a cabeça e continuou seu caminho para baixo em direção da praça. Da altura da colina, onde a loja do japonês estava situada, podia ver toda a aldeia velha. Na verdade, uma aldeia qualquer com exceção de um belo relógio de torre, feito no princípio do século XIX depois do descobrimento de ouro em Minas Gerais. Era o tesouro da aldeia e ficava mesmo ao lado da igreja—na sua locação e até também na sua posição de importância para o povo.

Quanto ao japonês, ele não tinha escolhido a propriedade porque tinha vista. Era mais econômico morar aqui na colina, longe do centro. Além disso, estava mesmo ao lado da auto-estrada. O suposto isolamento não incomodou o japonês, ele tinha como vizinhos o padeiro e o mecânico. De todo modo nem falava com nenhum dos dois.

Ao princípio a loja do japonês não se deu muito bem. Umas pessoas curiosas atravessaram a porta, viram as coisas e saudaram o proprietário. Porém, ninguém pensou em comprar nada. Na verdade, não tinham nenhum interesse nessas coisas. O japonês oferecia panelas tipo japonesas, vendia plantas bem pequenas que necessitavam de muito cuidado. Enfim, para a maioria das pessoas de Lorota, luxos que nem sequer pensaram em obter.

— Tristeza tem o vendedor daquelas coisas, comentou o mecânico.

Assim continuou por um longo prazo, o japonês estava lá dentro todo dia, a loja sempre aberta das 8 horas até às 20 horas, seis dias por semana. No domingo, ele estava lá também, arrumando a loja e tudo arredor. Saudava a gente que vinha da igreja, mas nunca participava na procissão. Falava pouco com os outros cidadãos, ainda não tinha aprendido muito português, embora passasse horas na loja com um livro aberto, um desses para aprender língua. Talvez não tivesse interesse ou simplesmente por falta de alguém com quem conversar, não avançou muito. O que era certo era que ganhou o respeito dos outros habitantes. Mostrava cortesia, trabalhava com esforço, e dava dádivas para a igreja na qual nunca tinha entrado. Nestes aspectos, era um cidadão exemplar para toda a aldeia.

Passaram anos assim, e embora ninguém perguntasse, todas começaram a se perguntar como era que o japonês podia continuar na aldeia sem vender nada. Porém, isto não era a realidade completa. Sim, vendia coisas, quase todas para turistas que vinham à aldeia de vez em quando, ou caminhoneiros que paravam para pedir ajuda do mecânico e compravam um sanduíche do padeiro. A estrada trazia esses clientes, e por muitos que vinham, o japonês ganhava a vida.

As pessoas que entravam na loja sempre ficavam mais tempo que deveriam. Pediam informações e conselhos do velho japonês. Quando os habitantes da aldeia perguntavam de quê falava o japonês com seus clientes, a resposta sempre era a mesma—que o estrangeiro tinha uma habilidade inexplicável para consertar e remendar coisas. Pegava os diversos objetos quebrados e escangalhados dos clientes e os levava à extremidade da loja atrás da cortina. Às vezes os clientes ouviam ele cantando ou assobiando numa voz baixa, numa língua incompreensível própria dele. Uma vez um turista japonês viajando pela aldeia até confirmou que o canto do misterioso proprietário talvez não fosse japonês.

— Ele tem um talento para retificar as coisas que não dão certo, explicou o turista japonês. Consertou meu relógio, um objeto antigo que ninguém antes teve sucesso em reparar. Agora mantêm o tempo certo, melhor que nunca.

— O que foi o problema então?

— Alguma coisa por dentro. Simplesmente não quis trabalhar mais.

— Era triste seu relógio, falou o padeiro sorrindo. Como diz o letreiro.

— Exatamente, replicou o turista numa voz séria. Mono no aware. Poucas pessoas podem corrigir a tristeza das coisas.

Foi naquele verão quando as chuvas não pararam que os cidadãos da aldeia reconheceram a veracidade da fala do turista. As chuvas de verão eram habituais e importantes, uma parte normal do ciclo anual. Os habitantes de Lorota, cansados do calor inacabável, gostavam das chuvas intermitentes que obrigavam a gente a ficar dentro das suas casas e refrescava a terra.

Porém, naquele verão a chuva não parou. As coisas começaram a dar mal.

Os primeiros objetos que quebraram eram aqueles que ficavam na baixada, perto do chão inundado. As cadeiras e as camas feitas de madeira local estrepitaram. Os livros molhados engrossaram e se desconjuntaram. Na maioria dos casos, os habitantes conseguiram reparar os danos materiais.

— Nunca vi tanta chuva na vida.

— Já parou. Agora vamos ver que tudo será o mesmo que antes.

— Oxalá, disse o padre.

Mas no ano seguinte os dias de chuva aumentaram, as tempestades ganharam até mais força. Foi necessário evacuar os animais domésticos e o gado para terra mais alta, perto da auto-estrada. Quando as chuvas abrandaram, retiraram as coisas e os animais e olharam as casas inundadas. Perceberam que não foi simplesmente a madeira, as paredes, e o chão das casas que ficaram danificadas. Nada escapou a ferocidade das chuvas.

— Os pratos quebram quando os levo à mesa. São frágeis como pão amanhecido.

— Os meus também. Até a roupa se descose quando a ponho.

Embora os devotos freqüentassem os serviços religiosos todo domingo, somente neste período começaram a rezar conscientemente. A qual aflição devia aquelas chuvas misteriosas? Por que as coisas se desconjuntaram de um dia para outro?

Foi o padre passando no caminho para a estrada que reparou um fato curioso, que a loja do japonês quase não foi afetada pelos dois anos de chuvas. As cerâmicas e objetos importados não ficavam frágeis nem quebrados. As arvores bonsai verdes como sempre. Tudo era firme e robusto, brilhava tenazmente no dia ensolarado depois da chuva.

— Fico no alto da colina, explicou o japonês e desapareceu detrás da cortina.

Poucos dias depois os habitantes desmoralizados da aldeia começaram a se perguntar por que estas atribulações chegaram a sua comunidade tão pequena e fiel. Congregaram na igreja no meio-dia quando o relógio de torre—graças a Deus quase não afetado pelos dilúvios—repicou o canto completo de Se Deus Quiser. Alguns dos membros da comunidade mais velhos e respeitados começaram a questionar como uma fatalidade tão grave e singular podia recair sobre eles, um rebanho tão pequeno e fiel. Aliás, outros queriam saber por que era que o japonês ficava sem nenhum dano material.

— A aldeia completa fica fracassada. Até o joalheiro, uma vez o mais rico entre nós, arrumou as coisas que sobraram e se mudou, depenado.

Nem todos estavam convencidos. A maioria ainda ficava todo domingo na igreja rezando, mas o que pediram do seu deus ninguém queria falar. Talvez algumas pessoas desejassem o mal para o japonês misterioso—não porque ele jamais freqüentava os serviços, e seguramente não por inveja da sua riqueza material da qual obviamente não tinha—mas por sua sobrevivência.

—Sem dúvida ele faz alguma malandragem, desconfiou o mecânico. Ninguém compra aqueles objetos esquisitos.

O padre também tinha suspeitado de algo desde o princípio.

— Os viajantes e caminhoneiros mostram para ele um respeito quase gentil.

O relógio da torre soou; eram as quatro horas da tarde. Embora tivessem discutido a situação por horas nada tinha sido resolvido. Todos sabiam que o melhor seria voltar a casa e já começar a reconstruir. O japonês não tinha idéia nenhuma da reunião na igreja, mas já desde antes tinha reconhecido a ânsia que os habitantes tinham em relação a suas poucas possessões. Umas pessoas improváveis entraram na loja para que ele pudesse reparar suas coisas. Pegou as coisas—na maioria instrumentos de trabalho ou utensílios da casa—e as levou para trás da cortina. Às vezes demorava somente uns minutos para fazer o necessário, em alguns casos pedia que os clientes viessem a próxima semana.

— Há muito para fazer, explicou o dono da loja. Vai demorar um tempinho para consertar uma fraqueza como esta.

O japonês nunca pediu pagamento deles cidadãos precisados. De todos modos, não tinham nenhuma moeda para pagar. No lugar de dinheiro mostravam sua gratidão com pãozinhos caseiros ou uma feijoada feita dos ingredientes que sobraram.

— Queria preparar um bolo de amendoins, disse o padeiro, mas não tenho nenhum sucesso com o fermento. Talvez esteja podre demais.

— Por motivo das chuvas?

— Sim, claro, disse o padeiro, esperando para ver se o japonês diria algo mais. —Disse, você não acha que o fermento está…sei lá…triste?

O japonês sorriu e devolveu os tabuleiros do padeiro.

— Não posso te pagar. Entende isto?

— Tanto faz, replicou o japonês, procurando seu livro de língua portuguesa. As coisas tem tendência de dar certo com tempo.

O tempo passou rápido em Lorota. Nuns meses salvaram todas as coisas que podiam reparar, e já o povo começou a se preocupar com o futuro. Nos domingos ninguém faltava na igreja (com exceção do japonês), e a comunidade continuava a ter reuniões para fomentar idéias e decidir o que iam fazer o próximo verão. Quando um dia de junho congregaram ao meio-dia para avaliar o progresso, confrontaram um novo problema. Se Deus Quiser, o canto do relógio de torre, não soou.

Ninguém tinha observado que o relógio tinha parado exatamente aos vinte minutos para as cinco na mesma manhã. Quando o padeiro olhou a torre, notou que as mãos do relógio paradas nessa hora deram a aparência de que o relógio fazia carrancas.

— Vou consertá-lo, disse o mecânico. Antes das chuvas.

Porém, as chuvas não esperaram. Em julho, normalmente o mês mais seco do ano, já começou a pingar, e o mecânico—embora perdesse todos os fins de semana fazendo o que podia—simplesmente não conseguiu entender o que era o problema. Alguns cidadãos sugeriam pedir ajuda ou conselhos do japonês que ainda nunca vinha às reuniões do domingo.

— Solicitar a ele para quê? falou o padre. Provavelmente ele é o culpado.

Até aquele momento ninguém tinha falado o que muito dos velhos da cidade já tinham pensado desde antes. Outras pessoas, os que visitavam o japonês para consertar as suas coisas, resistiram a noção que o japonês tinha feito alguma coisa ou que tinha trazido um mau olhado à aldeia.

— Não concordo, disse o padeiro. Ele não fez nada.

— Nada para ajudar seguramente, replicou o padre. Todos devem ter fé em Deus.

Em agosto as pancadas de água começaram com vigor. A terra, cheia depois de dois anos de enchentes, rejeitou a água e as casas inundaram mais rápido que antes. A escada do relógio de torre encheu de água da enchente e também de chuva entrando desde em cima. A praça central ficou um lago que somente as crianças de Lorota ousaram cruzar. E o padre também.

O japonês foi detido e encarcerado na igreja.

— Não vai ajudar, disse ele.

Nos dias seguintes a situação piorou. Mais que dilúvio chegaram umas chuvas de pedra que estragaram os telhados e as janelas das casas. Quando o padeiro cruzou o lago da praça central para trazer comida ao japonês preso na igreja, notou que até as janelas da igreja tinham sido destruídas. O prisioneiro tinha podido fugir, mas ainda estava lá no frio.

— No meu país não fugimos da verdade.

— Não estamos no Japão.

— Sou da Formosa.

O padeiro não sabia o que dizer.

— Estão tentando consertar o relógio da torre. Pensam que vai acabar com as chuvas.

O japonês somente sacudiu a cabeça e aceitou o prato de comida.

Neste momento entrou o padre e outros membros da comunidade, todos molhados e com expressões de miséria e medo nas caras.

— O mecânico, falou o padre. Está morto. Caiu nas pedras molhadas desde o topo do relógio de torre. Vêm rápido vocês dois!

Tranquilamente o japonês seguiu o grupo a um lugar elevado atrás da igreja onde a multidão da gente estava ao redor do mecânico falecido. Choravam os adultos enquanto as crianças, jovens demais para entender o que aconteceu, brincavam nas poças de água.

— Por favor, falou o padre para o japonês. Diga-nos o que é que acontece!

— Sei lá, respondeu o misterioso imigrante.

Subitamente o padre se desesperou. Começou a sussurrar orações e se tranqüilizou, a congregação inteira escutando.

— Ajude-nos.

O japonês virou para trás e sem emoção se dirigiu à torre. Com a ajuda do padeiro e dos homens mais novos, forçou aberta a porta fechada da torre. Um rio de água e lama escapou da entrada empurrando o japonês para trás. Esperou até que o nível da água decrescesse e entrou na torre, subindo as escadas molhadas com muita dificuldade até chegar ao topo. Imediatamente começou a examinar as marchas e os mecanismos rançosos do velho relógio. Logo confirmou que o problema não era lá dentro.

— Não há nada que ele pode fazer, lamentou o padeiro.

A noite caiu sem nenhuma senha que a chuva pararia, nem nenhuma indicação do progresso do japonês. O povo congregou ao redor do mecânico e o enterrou enquanto o padre falava da vida após da morte e da importância de fé.

Foi somente quando os cidadãos da aldeia acabaram o funeral e viraram para voltar a casa que observaram o japonês suspenso lá em cima no exterior do torre, agarrando as mãos do relógio numa tentativa de fazê-las mexer. Naquele momento um raio veio do céu. Ao coriscar o relâmpago o japonês caiu ao lago, morto.

A chuva não parou aquela noite, mas ficou uma chuva fina por alguns dias depois, e voltou de vez em quando até a primavera. O sol apareceu em setembro e o povo de Lorota deu graças a Deus. Consertaram tudo na aldeia que podiam, e como sempre trabalharam muito e passaram os domingos na igreja. Todo mundo olhava para o relógio da torre que continuava a funcionar sem interrupção. Poucas pessoas preocupavam-se que a hora sempre ficava três horas e dezoito minutos atrás. Ninguém se ofereceu a subir e consertá-la.

Somente o padre e o padeiro tinham discutido o que aconteceu naquele noite.

— Não sei, falou o padre. Deu a sua vida para salvar um estúpido relógio da torre. Como podemos ser burros assim?

— Talvez seja a tristeza das coisas, falou o padeiro.

O padre fingiu uma careta. — Fé em Deus, disse.

 

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